quarta-feira, setembro 28, 2005

'Habemus papão'

Fritz Utzeri: 'Habemus papão' (do verbo papar)

Na manhã chuvosa, a multidão se concentra na praça, os olhos voltados para a chaminé que sai do teto do edifício. Se for fumaça preta, será sinal de que os conclavistas ainda não se decidiram. E são cinco candidatos, ou papabili. O voto é secreto e as articulações e compromissos pululam. Comenta-se que o imperador Ignátius I destinou algo em torno de 500 milhões de táleres, para favorecer a eleição de seu candidato, Aldus. Esse dinheiro fora distribuído aos votantes para obras e ''caridades'' em suas sedes que atraíssem a simpatia de seus rebanhos (de onde vem a expressão ''curral''). Aldus circula intensamente e procura atrair votos, mas alguns conclavistas corrompidos aumentam o preço do apoio à medida que o escrutínio decisivo se aproxima.
Os oponentes acusam o imperador de simonia, mas este se defende dizendo que o monarca que o antecede, Fernando II, por ele derrotado e maquinando seu retorno, praticava esse malfeito com a maior sem-cerimônia e que, portanto, tratando-se de um pecado generalizado, deixa de ser pecado. A estranha interpretação teológica do imperador não encontrou oposição entre a maioria dos conclavistas, que - teoricamente - deveriam estar movidos pelo espírito, para o bem e a salvação de todos. Mas na prática prevalece o salve-se quem puder e o meu pirão primeiro.
Os conclavistas estão reunidos pela segunda vez em pouco mais de duzentos dias. No conclave anterior, o imperador fora extremamente inábil e apoiara um membro do alto clero arrogante e mal visto por seus pares e - especialmente - pelo baixo clero, que acabou impondo um dos seus: Severinus, homem rústico que, além de não ter preparo para a liturgia do cargo (ainda menos que o imperador), acabou perdendo-se por miúdas transações com um dos bodegueiros da cidade.
Nos primeiros escrutínios ninguém chegou à maioria e os arranjos continuam. Outro fator que intranqüiliza os conclavistas é a aberta interferência do grão-duque Renancius, dito o Calheirus, buscando derrotar o candidato Temérius, que normalmente seria favorito, por ser o seu grupo o mais numeroso, após a defecção de alguns ex-partidários do imperador. Mas Temérius vê o seu partido dividido. Três representantes do baixo clero aliaram-se, outros correm por fora e todos eles negociam com alguns hereges submetidos à Inquisição por seus malfeitos e ameaçados de serem excluídos da comunhão. Entre eles, um cardeal, Josephus Dircaeus, estigmatizado pelo tribuno Ropertus, que o acusou de várias bruxarias. Calcula-se na praça que a coisa toda custará caro até a fumacinha branca sair da chaminé e o povo exclamar (sem qualquer entusiasmo): ''Habemos papão!''. E depois, todos seremos amaldiçoados.
O caminho de Canossa
E já que estamos em clima de conclave, Josephus Dircaeus tomou o caminho de Canossa e apareceu na Folha de S. Paulo, imitando o imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Henrique IV, que brigou com o papa Gregório VII. Deve ter arranjado um marqueteiro culto - o Josephus, não o papa. Sua Santidade proibira o imperador de nomear padres, abades ou bispos, episódio conhecido como a ''Querela das Investiduras''. Henrique não concordou, acabou excomungado em 1076 e proibido de governar.
O imperador, sem coroa ou insígnias, em traje de penitente, apresentou-se no ano seguinte, humilde e descalço, às portas de Canossa, onde Gregório estava. Após esperar três dias ao relento e em meio à neve, foi recebido, inclinou-se ante o papa e submeteu-se a ele. Assim foi - manso e humilde - o Dircaeus que a Folha ouviu domingo, doce, afável, mas observando que Ignátius estava a par de seus feitos.
Quem se impressionar com a humildade do personagem, deve ler o resto da História. Em 1084 Henrique IV nomeia Clemente III antipapa e toma Roma, Gregório VII refugia-se no castelo de Sant'Angelo e escapa da morte por um fio, até ser libertado por soldados muçulmanos (!). Não confiem nos arrependimentos de Canossa. A zorra dessa história toda lembra o Brasil. Ainda mais porque tudo acabou num grande acordão (a Concordata de Worms) entre o papa e o filho de Henrique IV.

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