terça-feira, maio 09, 2006

Sorria, você está em maio

Tutty Vasques :
A temperatura amena, o azul indizível do céu, o amarelo morno do sol, o verde profundo das matas, o espetáculo do entardecer, maio no Rio é um ótimo pretexto para mudar de assunto. Xô, más notícias! "Que dia lindo, não?!" O feriadão do fim de semana passado foi uma espécie de avant-première desta época do ano em que a paisagem deslumbrante da cidade ganha iluminação divina. Coisa de fotógrafo! Assim que a frente fria passar haverá muito que dizer sobre as tonalidades do mar, o frescor da brisa no alvorecer, a exuberância do Jardim Botânico, a mansidão de outono na Lagoa... Para quem não se agüenta mais, indignado com a lambança política que assola o dia-a-dia do brasileiro em geral e do carioca, em particular, maio ensina como escapar do muro das lamentações cotidianas: rasgue elogios à natureza. Ela merece!
"Que lindo dia, hein!" – não dê ao motorista de táxi chances de engrenar discurso contra o estado de coisas a que chegamos. A desfaçatez dos homens públicos, o desgoverno, a roubalheira, enfim, essa idéia de que o fim do mundo se avizinha não resiste ao céu de maio. Em nenhuma outra época do ano o anoitecer contracena com o dia de forma tão natural. Estrelas em fundo azul-claro, noite à tardinha. Duvido que o apocalipse vá cair num dia irretocável como esses que virão por aí, pode esperar. Ainda que o pior esteja reservado para as eleições, o que deve saltar agora aos olhos do carioca a caminho do trabalho ou da escola é a beleza do lugar maltratado onde vivemos. "Que cidade maravilhosa a nossa, né não?!" – é o tipo de observação que desconcerta os indignados de plantão. Funciona como um aviso para que não se estrague tão bela jornada com a ladainha coletiva que o noticiário inspira nas pessoas de bem. "Olha pro céu, meu amor, veja como ele está lindo..." Daqui a pouco será São João.
Sorria, estamos em maio! Se isso não for suficiente para tirá-lo desse sentimento de cólera que a sem-vergonhice oficial desperta, pense noutra coisa. Rápido! Ioga, pilates, tai chi chuan, análise, terapia regressiva, cachaça, futebol, sei lá, toda vez que o sobressaltar um desejo incontrolável de dizer o que pensa sobre o fome zero de um ou a greve de fome do outro, controle-se. Vá tomar um sorvete na lanchonete ou dois chopes no boteco. Vencida a crise imediata de abstinência, apaixone-se, converse com seus filhos, cultive amigos engraçados, curiosos e animados, dê atenção especial aos que não se levam muito a sério. Procure saber da piscina, da margarina, da Carolina...
Tenho fugido de conversa política como o diabo da cruz. Isso no meio que freqüento é um problema, mas tenho lá meus truques para não cair em ciladas. Simulo, por exemplo, mal-estar repentino quando pressinto que o papo dos colegas jornalistas vai acabar na vala comum do "não queira nem saber o que está por trás disso". Não quero mesmo! Tarde dessas, saí de um encontro agradabilíssimo com meus caros amigos a tempo de não ouvir detalhes sobre os intestinos da polícia carioca revelados no novo livro de Luiz Eduardo Soares, Elite da Tropa, que o próprio autor define como "uma pancada forte na cabeça do leitor", algo que "o fará perder o sono". Com todo o respeito ao trabalho do nobre sociólogo, tô fora! Talvez leia seu livro no inverno.
Estamos em maio, e não venha me dizer que o outono é coisa de alienado. Alienante é o noticiário para quem não presta atenção na vida como ela sempre foi – gostosa e engraçada – , e era assim que devia permanecer naquele fim de tarde em que escapei da noite escura do livro do sociólogo. Busquei com outros desertores da realidade nua e crua abrigo cultural no Instituto Moreira Salles. Em que outro lugar do mundo existe um cineminha igual àquele? Chegamos em cima da hora da sessão, estacionamos o carro na mata, atravessamos saltitantes a piscina e os salões do casarão do alto da Gávea, o filme era A Lula e a Baleia. Projeção, ar-condicionado, conforto, o barulhinho do rio na saída, tudo perfeito demais para se perder na esquina adiante, onde policiais apontavam fuzis para a curva da estrada. Perigo! Demos de ombro ladeira abaixo, ríamos muito comentando algumas esquisitices do filme que acabáramos de ver.
Todo o mundo é muito esquisito. O Rio, o país, a Bolívia, a América do Sul... O Nepal, então, nem se fala – coisa de louco. Recomenda o manual de sobrevivência em todo esse vasto território do absurdo que não se estranhe nem se dê muita bola a mais nada do que dizem os jornais. Boas notícias não se criam em bancas. Nascem em casa, no convívio com amigos, filhos, namoradas, vizinhos... Crescem lá fora sob a temperatura amena, o azul indizível do céu, o amarelo morno do sol, o verde profundo das matas, o espetáculo do entardecer nesta época do ano... Maio tinge o caos com nuances de paraíso. Vamos lá, mude de assunto.

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