quarta-feira, agosto 03, 2005

Filosofia e caixa dois no Flor do Lavradio

Não há nada melhor do que sanduíche de boteco. O de carne assada, por exemplo, é divino quando é o Seu Manoel que o faz, com um pãozinho crocante por fora e macio por dentro, quentinho, cortado em dois, na diagonal, com um chope geladim, hummm... O Magu, Harald Magnussen, nosso plumitivo sueco, perdido nesta terra de malucos, adora. Aliás, a carne assada feita pela Otília, com um molho grosso de ferrugem acompanhando um feijão bem adubado, desse com lingüiça (de Minas) e paio (da Santa Terrinha, trazido pelo Seu Manoel em pessoa), e um arroz soltinho com um leve tempero de coentro e mais umas batatas coradas são de comer rezando.
Magu estava se fartando e provando uma pimentinha esperta, combinação de vários tipos de pimenta (dedo-de-moça, de cheiro, malagueta e rosa), azeite extra-virgem e uma pitada de cachaça, tudo posto para ''marinar'', resultando num tempero que ressalta o gosto em lugar de matá-lo, coisas que fazem o nosso sueco esquecer os arenques defumados e frios que costumava comer em sua terra.
- Por que o Brasil não pode ser que nem esta comida? - perguntou Magu, meio ao ar, mas não escapou da atenção de Fefeu, o Filósofo, que estava de bom humor naquela manhã (aliás, ele está sempre de bom humor, a filosofia tem dessas coisas).
- Ora, sueco, se o Brasil fosse diferente, a comida também seria. Essa comida de que você gosta é irracional. Como imaginar uma rabada, uma buchada, uma feijoada ou uma moqueca a 40° C? Vocês lá na Suécia é que deveriam comer isso e não nós. Aqui é assim; sobre o que você está escrevendo?
- Pois imagine, Fefeu, que estou com um problemão. O Valdemar, aquele ex-deputado do PL, o da mulher perua, que fugiu com a mobília do partido e que negava ter recebido dinheiro do Jefferson, renunciou ao mandato depois de negar o que havia negado e ainda foi elogiado pelo Severino. Como eu vou explicar isso para os meus leitores, pior ainda, como o editor vai aceitar isso?
- Explica pra ele que aqui no Brasil é assim, se você for deputado e cometer um crime pelo qual possa perder o mandato e direitos políticos, você renuncia antes de ser cassado e um ano depois volta reeleito pelo povo e fica tudo como antes.
- Ué? Mas ele não recebeu dinheiro não contabilizado? Ele não fez caixa dois? Não sonegou? Isso não é crime? E o povo vota nele de novo? Que povo é esse?
- Pelo jeito não é crime, pelo menos aqui no Brasil. Você não vê o Marcos Valério? Ele andou distribuindo dinheiro sem recibo à vontade, quase 50 milhões e a Justiça se recusa a prendê-lo. Quanto ao povo, meu caro, você nem parece sueco. Nunca lhe contaram por que a gente tem a política e o povo que tem e o Japão tem furacão, maremoto, vulcão e terremoto a toda hora?
- Não.
- É porque quando o mundo foi criado, o Japão escolheu primeiro - respondeu Fefeu.
- Quer dizer que caixa dois pode?
- Pode, sem qualquer dúvida.
Em um canto do boteco, Apolônio, o Indignado, brandia um exemplar do JB e vociferava:
- Vejam só que absurdo! Está aqui na primeira página: ''A matemática dos escândalos: de R$ 3 mil a 4 bilhões'', pode um negócio desses?
- Claro que pode - interveio Rosalvo, o Despreocupado, que até então estava em silêncio - Trata-se de cumprimento de promessas de campanha. Vocês vivem acusando e não percebem quando as promessas de campanha são integralmente cumpridas... Vocês deviam é agradecer.
Apolônio interrompeu:
- Escuta aqui, você ficou maluco? Que promessas de campanha?
- Simples, o homem não tinha prometido um ''espetáculo do crescimento''? Quer crescimento mais espetacular do que esse? - disse Rosalvo, deixando o boteco às pressas antes que Apolônio lhe acertasse um copo na testa.
''Mooora/ na filosofia/ pra que rimar/ amor e dor...'', cantava Lindalva em sua microcozinha, fritando uns bolinhos de bacalhau que... Huuuummm...

Fritz Utzeri

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